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Era só uma terapia

Era só uma terapia, mas rendeu muito mais.

Primeiramente, caro leitor desse texto, eu peço desculpas por ser uma pessoa prolixa. Assim como falo demais, culpem-me por ser geminiano, eu também escrevo muito, mas tudo foi graças a terapia que fiz por anos, e que me mostrou que, quando lacônico, eu não me fazia claro com minhas colocações, logo, por muitas e muitas vezes, minhas falas foram tiradas de contexto, então, decidi ser aquela pessoa que explica tudo nos mínimos detalhes, ou pelo menos tento, e é isso que tentarei fazer nas próximas, e muitas, linhas dessa pequena dissertação. Eu sei, eu sei, vai parecer confuso, mas leia com calma, com paciência, e você conseguirá compreender a minha linha de raciocínio.

Recentemente, eu tive um pequeno surto nervoso após ouvir defensores do atual governo falando mentiras sobre vacinação, tratamento precoce, a ordem das sete famílias mais ricas do mundo, etc, etc… aquelas afirmações que você consegue enxergar numa corrente do WhatsApp com muitos emojis de atenção e vômito, letras maiúsculas e negrito e que sempre são oriundas de uma afirmação rasa proferida pelo pior presidente de todos os tempos. Então, eu desabafei com meu companheiro e  com um amigo meu, questionando em voz alta sobre os motivos que levam alguém a defender discursos tão infundados e com argumentos tão primários (“primário” aqui entenda como atitude de 5ª série) com tanto afinco, amor, ódio e certezas. Enquanto eu andava pela sala, eu me questionava como era possível tais pessoas existirem, e, entre perguntas e comentários que eles me faziam, do nada, eu comecei a perceber um padrão comportamental de um apoiador específico e, logo, percebi que as características não se aplicavam só a ele. Meu companheiro e meu amigo pararam e ouviam minha análise concordando com a cabeça e com expressões de como quem buscavam na lembrança similaridades em seus antigos meios sociais. A conclusão foi unânime, todos os apoiadores que conhecíamos tinham o mesmo perfil. Pela primeira vez, eu entendi que não era algo isolado, que não era algo oriundo dos últimos quatro anos, eu entendi quem são, eu entendi de onde vieram e o porquê de não colocarem em prática a máxima repetida à exaustão há quatro anos: “Se ele fizer merda, a gente tira”. Eles sempre estiveram entre nós.

Por vezes, eu me peguei analisando os porquês da ascensão vertiginosa da direita no Brasil, buscando explicações que nos levaram ao caos que estamos vivendo desde o Impeachment de Dilma Rousseff e eleição do atual e pior presidente da história de nosso país, mas as conclusões sempre voltavam ao velho jogo político do poder, quando, na verdade, eu afirmo agora que foi, e me dói dizer isso, uma jogada de mestre saber tirar proveito de algo que sempre tivemos no Brasil, que faz parte da nossa cultura há séculos e que ganhou uma roupagem urbana no decorrer da modernização da sociedade: o causo. Isso mesmo que você leu, tudo isso começou por causa de causos, gênero discursivo que apresenta fatos reais ou fictícios em suas histórias, contadas de forma engraçada, com objetivo lúdico. Mas o causo evoluiu, veio a versão da cidade, a famosa lenda urbana, que nada mais é do que histórias fantásticas ganham fama por serem divulgadas no boca-a-boca, e, após a revolução digital, por todo e qualquer tipo de aplicativo e rede social. A lenda urbana é contata com a premissa de terem acontecido com um amigo, com o primo do porteiro, com o sobrinho da vizinha da síndica do condomínio, e sempre com aquele tom de que pode acontecer com você a qualquer momento.

E foi revisitando memórias compartilhadas com amigos, hoje apoiadores do governo, que encontrei o fato lenda urbana em todas elas, e que se tornou o meu ponto de partida para uma análise do perfil conhecido e chamado de “pobre de direita”, o apoiador ferrenho do atual presidente, de suas teorias conspiratórias, afirmações infundadas sempre em tom de PhD no assunto, um tom soberbo de como alguém que afirma que você é limitado demais pelo sistema de ver além da verdade. Mas entender o que isso tem a ver com o bombardeio diário que temos de desinformação é que é a grande sacada. Entender isso, é entender com quem lidamos diariamente, é entender que, em sua maioria, o apoio não é ao presidente, mas a algo que essas pessoas buscaram por toda vida: pertencimento.

Nesse momento, leitor, eu quero deixar uma coisa clara: eu não sou formado em Psicologia. Meu texto é proveniente da minha percepção do mundo que me rodeia. Por ser ator, eu tenho facilidade de observar pessoas, comportamentos, ações e discursos. Quando esses são apresentados por mais de três pessoas no meu meio social, eu observo e tento pesquisar sobre aquele comportamento específico. E, com base no meu conhecimento e convivência com elas, troca de confidências, histórias e até traumas, eu analiso para saber se meus “achismos” e pesquisas têm fundamento. Foi assim que identifiquei que vivia um relacionamento abusivo com um sociopata, que eu não era doido como ele sempre me dizia, foi assim que me livrei e me livro de amizades tóxicas e ambientes e conversas desagradáveis. Logo, o que relatarei nas linhas a seguir é baseado em longa convivência com pessoas que demonstraram o mesmíssimo comportamento ao longo da vida e que vieram a fazer parte desse grupo que defende a atual (falta de) administração do país. Você tem total direito de não concordar com nada do que eu direi, questionar, é o seu direito constitucional de fazê-lo.

Eu vou falar principalmente de apoiadores homens, pois foi com quem convivi a maior parte da minha infância e adolescência. Ainda convivo com muitos na vida adulta, o que me ajudou muito na minha análise, e a maioria deles se comportava de forma agressiva, narcisista e egoísta quando pequenos. Gostavam de ser o centro das atenções, fossem elas quais fossem. Não sei se poderia chamar assim, mas acredito que sofriam da Síndrome do Imperador,  um comportamento que geralmente mostram traços egocêntricos e de pouca tolerância à frustrações. “São crianças que não aprenderam a se controlar, nem regular os seus sentimentos e emoções. Elas têm a experiência necessária para saber quais são os pontos fracos de seus pais, a quem acabam manipulando com ameaças, ataques e argumentos inconstantes”, segundo diz o psicoterapeuta Leo Fraiman. No meio popular, é a criança mimada, mal-educada, briguenta e birrenta, aquela que se joga no chão do shopping porque não teve sua vontade feita. Ele também afirma que “muitos psicólogos e psicopedagogos enfatizam que um dos fatores que levam a criança a adquirir esse comportamento é a escassez de tempo dos pais para educarem e estabelecerem normas e limites para eles. Necessidades econômicas e um mercado de trabalho instável não oferecem aos tutores o tempo e espaço necessários para a criança, ocasionando um estilo educacional culpabilizante, e por isso ficam propensos a concordar e superproteger seus filhos. Também se pode observar nessas crianças uma falta de hábitos afetivos familiares, negligenciando a necessidade de brincar e interagir com as crianças. Socialmente, um dos problemas que serve de base para o comportamento egocêntrico, é a atitude ultra-permissiva dos adultos com relação às crianças.”.

É claro que o perfil comportamental descrito acima gera consequências, mas é em outro momento da vida em que o perfil que estamos traçando é consolidado, é o divisor de águas, e ele é conhecido pelo “período de transição entre a infância e a vida adulta caracterizada pelos esforços do indivíduo em alcançar os objetivos relacionados às expectativas culturais da sociedade e pelos impulsos do desenvolvimento físico, emocional, mental e social”, a adolescência. E para entender como o perfil minion existe hoje, é preciso, também, conhecer as profundas mudanças pelas quais a adolescência passou desde o início do século XX até os dias atuais do século XXI.

Em um artigo para FAPERJ chamado “Uma análise da adolescência ao longo da história”, Débora Motta escreve: “De acordo com a psicanalista Luciana Gageiro Coutinho, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro ‘Adolescência e errância – destinos do laço social no contemporâneo’ (editora Nau, 2009) […] o trabalho psíquico da adolescência implica na busca por novas referências subjetivas, ou seja, novos ideais do ‘eu’. As chamadas ‘tribos’ urbanas – como a dos atuais emos, dos punks dos anos 1980, ou dos hippies nos anos 1960 – representam uma forma de tornar o trabalho psíquico da adolescência menos solitário. ‘Cada tribo tem uma proposta  e um modo de funcionamento diferente, que se sustenta através de identificações entre os seus membros.  Mas os rumos tomados  por cada sujeito  a partir de seus laços  na tribo podem ser diferentes, não há determinismo’”. Vamos tentar um pouco mais explicado. Em 16 de maio de 2017 ocorreu uma discussão em forma de seminário na Câmara dos Deputados “motivada pela proliferação, nas redes sociais, de grupos de jovens com o tema ‘Baleia Azul’, associado a supostos incentivos a situações de risco entre adolescentes. Segundo a reportagem da Agência Câmara de Notícias, “a psicóloga Marisa Lobo disse estar atendendo neste momento a 14 crianças e adolescentes que se envolveram com o ‘Baleia Azul’. São jovens, segundo ela, que sofrem bullying na escola, querem aceitação dos colegas e até manter a popularidade entre os amigos, além daqueles que enfrentam problemas em casa, como a separação dos pais ou cobranças em demasiado.”. Identificação com uma “tribo”, aceitação, bullying, manter a popularidade, enfrentar problemas em casa, ou seja, pertencimento. 

E onde a lenda urbana entra nessa história, Thiago? Paciência, caro leitor, é algo que precisamos ter com um geminiano, porque ele vai chegar lá.

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Você já deve ter tido aquele amigo que era o contador de histórias da turma. Tudo acontecia com algum conhecido dele, às vezes até com ele ou um membro da família dele, e ele sempre se tornava o orador do rolê pós-brincadeiras, seja pela boneca de uma apresentadora que matou alguém no interior do Brasil, seja por um punhal dentro de um boneco super fofão (Ahá!), ou sobre uma loira que adorava ficar dentro dos banheiros da vida. Ele tinha uma história para tudo, ele sabia sobre todos os assuntos, tinha um relato para qualquer coisa que você dissesse. Você sentiu uma presença? Ele viu fantasmas. Você viu uma estrela cadente, ele teve um contato com uma nave espacial. Você brincou da brincadeira do compasso, ele viu todos os copos da casa voarem por conta de um espírito obsessor invocado pela mesma brincadeira. A história e vivência dele era sempre melhor do que as dos outros, porque todos prestavam atenção no que ele estava contando. Não que todos acreditavam, mas porque sabiam lá no fundo que era o jeito dele de se sentir pertencente a um grupo, mesmo que fosse mentindo, ou melhor, contando uma lenda urbana. Na sua vida particular, ele enfrentava todos os desafios de estar crescendo, além de problemas em casa, que, consequentemente, afetavam seu desempenho escolar, fazendo com que, ao terminar o Ensino Médio, ele ingressasse em qualquer emprego que aparecesse, não permitindo que buscasse uma graduação, um estudo, uma formação. O dinheiro de muito trabalho entrava e ele só queria mais pertencimento, e esse pertencimento vinha por meios materiais, como carro, roupas caras, festas, viagens. Ah, esse último é muito interessante, porque a versão carioca desse perfil gosta de Arraial do Cabo, Penedo, Cabo Frio, Saquarema e Búzios. A versão nacional é Cancun, Nordeste e Gramado. No quesito carro, eu só tenho uma coisa a dizer: HB20.

Eu peço a você, caro leitor, que lembre-se de tudo que aconteceu, do que foi dito e noticiado desde os protestos de 2013, durante a campanha eleitoral de 2014 e durante o ano de 2015 até a aceitação do impeachment de Dilma. Tenho a mais absoluta certeza de que você ouviu muitas “lendas urbanas” em mesas de bar, em sociais, ou pós-futebol, e todas elas vieram da mesma pessoa: o Forrest Gump do grupo. Aposto que ele sempre tinha algo a dizer, porque ele tinha uma informação privilegiada de fontes seguras e confiáveis e, mais uma vez, se tornava o centro das atenções das conversas, mas, dessa vez, ele tinha um tom mais forte, e, me permita ser repetitivo, um tom de PhD no assunto, um tom soberbo de como alguém que afirma que você é limitado demais pelo sistema de ver além da verdade. Só que, dessa vez, ele tinha pares na mesma mesa de bar ou social, ele não mais discursava sozinho, porque havia mais um ali para corroborar sua declaração. Logo, esse mais um se tornou mais dois, três e, quando você foi perceber, você já não pertencia àquele grupo de pessoas.

Agora, imagine essa pessoa, que queria se sentir pertencente, importante e reconhecida em um meio social, se deparando com o recém eleito presidente da nação mais poderosa do mundo, que, de uma certa maneira, compartilhava do mesmo estilo narrativo que ela. Diante dessa pessoa está alguém que valida seu perfil comportamental, e ela, pela primeira vez, se sente acolhida, mesmo sem saber a fundo os reais motivos pelos quais há essa identificação, mas não importa,o sentimento de pertencimento que ela tanto buscara se materializa bem diante dos seus olhos na figura de Donald Trump e em sua retórica absurda de campanha, mas que o rendeu a vitória. Retórica pura e simplesmente baseada em lendas urbanas disseminadas por pessoas exatamente iguais a esse amigo que descrevi ali em cima, e, como sabemos que os norte-americanos amam uma teoria da conspiração, foi arrebatadora ao dar voz a todos os sem-tribo que nunca se sentiram socialmente importantes.

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E aí, chegamos a 2017, 2018, e um candidato à Presidência começa a emergir das sombras usando as mesmas retóricas de Trump, mas com uma particularidade interessante: ele não sabe falar, nem compartilha do dom da oratória que seu primo dos States tem, e nem precisa, e é aí que eu digo de novo que foi uma jogada de mestre, pois, o que lá é teoria da conspiração, aqui é a lenda urbana contada de boca a boca, compartilhada pelas redes sociais em tons de alarde, igualzinho o que o Forrest Gump fazia quando criança, adolescente e, agora, como adulto. Ele agora tem um Trump para chamar de seu, ele tem alguém que representa tudo que ele é psicologicamente, que simplesmente amplifica sua voz, sua “opinião”, e o círculo se fecha quando as pesquisas apontam a popularidade do atual presidente e ele se vê rodeado de pessoas que se sentiram como ele a vida inteira, ele agora pertence a um grupo, ele agora tem voz, ele agora tem vez, ele agora pode compartilhar suas lendas urbanas com outros, e ele não será julgado, tratado como mentiroso, contador de histórias, carente de atenção, ele vai ser reconhecido como uma pessoa que tem o seu lugar na sociedade, e é por esse motivo pelo qual ele não reclama da inflação, do preço da gasolina, da carne, é por esse motivo, que pode parecer banal para alguns, que ele permanece inerte e ferrenho defensor do atual governo diante da maior crise sanitária dos últimos 100 anos,  porque, para ele, ir contra o governo é não mais pertencer a um grupo, não mais ser reconhecido como alguém relevante em seu convívio social, é perder tudo aquilo que ele sempre desejou, se sentir pertencente. Há também em alguns casos um sentimento de ressentimento, talvez proveniente da não oportunidade de ter avançado em sua educação e, consequentemente, em sua carreira profissional, algo que se reflete sempre na culpabilização do outro, pois são os fatores externos, terceiros os responsáveis por isso.

O causo evoluiu para lenda urbana. A lenda urbana (des)evoluiu para Fake News e tudo isso graças a uma necessidade de se sentir amado, visto, reconhecido, e que começou lá na infância, portanto, eu gostaria de dizer a você, caro leitor, que busque conhecer a fundo a história de vida desse apoiador, por mais que isso possa parecer absurdo, e eu lhe digo que a palavra-chave é empatia, algo que eles provavelmente nunca tiveram ou aprenderam na vida. Conhecer a história de vida do outro nos ajuda a entender quem ele é, seu comportamento e maneira de ver o mundo, e acredito que essa pode ser a chave para que os próximos quatro anos sejam diferentes dos que passaram, mas, como também estou cansado de tudo isso, é inevitável não pensar que era só fazer uma terapia que não estaríamos onde estamos hoje.

Por Thii Gouveia

Se você acha meu Twitter confuso, precisa ver minha vida. Farofeiro do
Farofeiros Cast.

3 respostas em “Era só uma terapia”

Rapaz, identifiquei vários similares, me identifiquei, identifiquei você, me senti dos dois lados da mesa.
Mas ressentido não acredito que tenhamos motivos para ser.
E que bom que sinto em meu coração, mais do que penso em minha cabeça, que estamos dessa vez do lado bom da Força!
Vai ser trabalho pra Iluminados ser empático com esses apoiadores da destruição e do desamor!

Gostei bastante do texto, é verdade que sim tem esse lance do pertencimento né? Mas num geral eu lembrei de um meme que circula de vez em quando entre meus amigos de esquerda que diz que “estamos fazendo terapia agora porque nossos pais e os pais de nossos pais não fizeram!”
Enfim, é foda.

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