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The Boys e o ultra-neoliberalismo

A aclamada série “The Boys”, disponível na plataforma Amazon Prime Video, se destaca como uma das produções mais originais e provocativas dos últimos tempos. É baseada nos quadrinhos homônimos de Garth Ennis e Darick Robertson, publicados entre 2006 e 2012. A série adapta e atualiza de forma genial a abordagem ácida e satírica das obras para o contexto contemporâneo. Por isso precisamos falar de The Boys e o ultra-neoliberalismo.

É ambientada num mundo onde os super-heróis existem, mas são tratados como celebridades e produtos comerciais pelas corporações que os controlam. Ainda revela a realidade por trás da fachada heroica: mercenários corruptos e violentos, manipulados e explorados por poderosas corporações, dignos de asco e compaixão, pena e desprezo.

Com uma abordagem que vai além dos limites convencionais, aborda temas como poder corporativo, exploração, desigualdade e a comercialização das habilidades e talentos, o universo da produção apresenta uma forma exacerbada de globalização neoliberal e da forma de produção capitalista. Em tal arranjo, as corporações que controlam os super-heróis são agentes que exploram comercialmente a privatização da segurança pública, a desregulamentação dos poderes, a precarização dos direitose a financeirização da vida em sociedade. É uma materialização extrema da proposta ultraliberal, que mira a completa usurpação das funções estatais, esvaziando o estado e sociedade da sua soberania e poder de decisão coletiva. Tudo sem qualquer controle externo, intervenção regulatória ou transparência, por óbvio.

Os super-heróis representam uma complexa mistura de trabalhadores, meios de produção e mercadorias que geram lucros e poder para as corporações, mas também sofrem exploração e alienação. São commodities de ponta a ponta. Como trabalhadores, suas habilidades, ações e poderes extraordinários são explorados e vendidos como produtos para atender às demandas do mercado, transformando o vigilantismo num produto comercial. São constantemente empregados para realizar tarefas específicas, como “proteger” a sociedade ou executar outras missões designadas.

Este vigilantismo de prateleira consiste em usar os super-heróis para supostamente combater o crime e o terrorismo, todavia de forma espetacularizada, inconstante e lucrativa. O problema precisa perdurar para que este comércio de soluções vazias persista. A prática cria uma ilusão de segurança e justiça, mas, na verdade, serve para legitimar a violência e a opressão das corporações sobre a sociedade, sem ação contrária de governos ou estado. Noam Chomsky. O renomado linguista e filósofo, oferece críticas contundentes à este capitalismo e às suas estruturas de poder, argumentando que as corporações manipulam a opinião pública e trabalham em prol de seus próprios interesses, em detrimento do bem comum.

The Boys e o ultra-neoliberalismo - Os Sete dinheiro queimando - Blog Farofeiros

Como meios de produção, eles são joguetes nas mãos das companhias e utilizados para criação de toda sorte de conteúdo e merchandising. Sua imagem é manipulada e as corporações controlam as notícias e a publicidade acerca deles para promover suas marcas e vender cacarecos. Naomi Klein, é uma jornalista e escritora que analisa a influência do neoliberalismo e das corporações na sociedade contemporânea. No seu livro No Logo explora o fenômeno da comercialização e da exploração das marcas pelas corporações, discutindo os impactos negativos dessa lógica de mercado na vida das pessoas.

Como mercadorias, eles também fazem parte de um exército industrial de reserva, conceito também explorado por Karl Marx para exemplificar como o sistema de produção capitalista prescinde duma massa de desempregados. No seriado, tal parcela da população possui habilidades extraordinárias, mas não faz parte do grupo de elite conhecido como Os Sete. No contexto, eles são explorados pelo seu empregador, a Vought International, que os utiliza como peões em seus jogos de poder e interesses, descartando-os quando não são mais úteis ou rentáveis. Neste enredo, eles se assemelham a um exército industrial de reserva, estando à margem do sistema, porém prontos para servir aos interesses corporativos por algumas migalhas de fama, dinheiro e poder.

O fenômeno ilustra como o sistema capitalista cria desigualdades abissais e precarização do trabalho, criando uma competição desumana entre os trabalhadores e tratando-os como descartáveis. Michel Foucault, foi um filósofo francês que analisou as dinâmicas de controle e dominação exercidas pelas instituições sociais, incluindo as corporações, argumentando que o poder se dissemina em todas as esferas da vida social.

Por fim, o seriado também evidencia muitos elementos do chamado “fetiche da mercadoria”, conceito desenvolvido por Marx para explicar a natureza das mercadorias como essência material do sistema capitalista. As corporações capitalizam esse fenômeno, criando fantasias e uma imagem idealizada dos super-heróis para atrair consumidores e maximizar os lucros.

The Boys e o ultra-neoliberalismo - Homelander em chamas - Blog Farofeiros

No contexto da série, os super-heróis são elevados a um status de idolatria frente à opinião pública, onde sua imagem e representação criam uma aura de poder e admiração. Roland Barthes, um renomado teórico literário e semiólogo, explorou o conceito de mitologias modernas em sua obra Mitologias. Ele examina como figuras e ícones culturais, incluindo heróis, são construídos e transformados em símbolos através dos processos de comunicação e consumo. Ele analisa como essas mitologias modernas influenciam e moldam a sociedade.

Em contrapartida a tudo isso, surgem The Boys, um grupo formado por pessoas comuns que se opõem aos super-heróis e às corporações que os controlam. Eles são uma forma de resistência popular, denunciando e combatendo as injustiças e abusos cometidos pelos super-heróis e corporações. Sua missão é expor a verdade por trás da imagem heroica dos super-heróis, revelando seus crimes, abusos e segredos, além de impedir os planos das corporações de expandir seu domínio sobre a sociedade, utilizando os super-heróis como armas políticas e militares. Eles se tornam assim verdadeiros iconoclastas, até mesmo anti-heróis, sendo sua conduta alguma medida uma tentativa de resistência e até de revolução urbana. Sempre buscando criar espaços de participação, solidariedade e justiça na sociedade, contra os efeitos alienantes e excludentes do modelo estabelecido.

Tudo posto e pouco dito, The Boys e o ultra-neoliberalismo andam de mãos dadas na forma de crítica, onde tudo transmuta em mercadoria e é vendido por lucro desenfreado. Através de suas reflexões sobre as dinâmicas do capitalismo contemporâneo e os perigos da comercialização desenfreada. A série enfatiza a importância da resistência e da luta contra as estruturas de poder, o status quo que perpetua desigualdades e exploração

Por Alessandro F. Rodrigues

William Foster cosplaying Ferris Bueller.

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