Devemos separar (ou não) autor e obra?
A criação, seja ela artística, técnica ou filosófica, é um universo fascinante que nos envolve com conhecimento e beleza, indo além das barreiras do tempo e da cultura. As pirâmides do Egito, majestosas e imponentes, exemplificam a habilidade humana de criar obras imortais. No entanto, investigando a história por trás dessas construções, deparamo-nos com os questionamentos éticos resultantes da exploração, da escravidão e da tirania dos faraós.
A obra de maior impacto sobre a relação entre criador e criatura é, sem dúvida, Frankenstein ou The Modern Prometheus, de Mary Shelley. Nela, um estudante de medicina genebrino cria uma criatura humanoide a partir de cadáveres que se revolta contra ele. Ela nos convida a pensar como nem sempre criador e criatura estão alinhados.
Então, deveríamos separar obra e autor (ou artista)? O debate é quente, meus amigos!
Exemplos selecionados
Alguns exemplos de criadores que as atitudes colocam sombras sobre suas obras são Monteiro Lobato, JK Rowling, Martin Heidegger e Morrissey.
Monteiro Lobato, é o Flá-Flu do debate da separação do artista e obra no Brasil. O autor de “Sítio do Picapau Amarelo”, é conhecido por suas contribuições à literatura infantil no Brasil, mas também enfrenta críticas devido a algumas de suas visões e expressões preconceituosas em relação a questões raciais e acusações abertas de racismo.
JK Rowling, escritora, produtora e boca de confusão inglesa, mesmo envolta em controvérsias de recorrentes declarações plenas de transfobia, nos presenteou com o mundo mágico de Harry Potter, transcendo universos criativos distintos da literatura, do cinema, do teatro e dos video games, ensinando valiosas lições sobre amizade e coragem.
Martin Heidegger, renomado filósofo alemão, apesar do controverso histórico de ligações íntimas com o nazismo, deixou um legado intelectual profundo, gerando debates sobre a existência humana. Sua obra ecoa através das décadas, estimulando questionamentos que vão além de suas ações passadas. Particularmente eu acho que não há possibilidade de reconciliação com partidários do bigodinho e cata-vento, não é uma posição negociável, mas esta é uma visão pessoal.
Morrissey, vocalista e compositor da cultuada banda The Smiths, que a música encanta pela poesia e reflexões sobre a vida e identidade, continua a emocionar e conectar inúmeros fãs ao redor do mundo, apesar das polêmicas em suas declarações públicas de xenofobia e islamofobia, que colocam o cantor no colo da execrável extrema-direita britânica.
A favor
Essas reflexões nos levam a considerar a importância de separar artista e obra, permitindo que apreciemos sua essência, independente de suas origens controversas. A visão da “ars gratia artis” (arte pela arte) nos convida a apreciar a arte de forma objetiva, valorizando suas características estéticas e expressivas, desprendidas de contextos ou históricos. Dessa forma, podemos admirar a arte em toda sua complexidade, sem nos deixarmos levar por julgamentos morais ou ideológicos.
A obra de arte tem autonomia e identidade próprias, comunicando-se diretamente com o público, com cada pessoa atribuindo significados únicos. Ela transcende as limitações temporais, culturais e sociais de seu criador, conectando-se com diversas realidades e expressando sentimentos e ideias universais. Pode ser maior do que o próprio artista, alcançando dimensões não previstas.
Defender a separação entre artista e obra não significa ignorar as ações ou opiniões problemáticas do artista, mas sim reconhecer que a obra de arte possui uma identidade própria, independente do seu criador.
Contra
Mas há vozes contrárias à separação entre artista e obra, argumentando que a arte reflete a personalidade, visão de mundo e intenções do criador. Toda obra de arte pode ser usada como ferramenta de manipulação, propaganda ou alienação, legitimando ações controversas do artista. Nesse ponto, é vital reconhecer que a separação entre artista e obra é tênue, mas não deve ser um escudo para questões éticas e políticas envolvidas.
Algumas pessoas acreditam que apreciar a obra de um artista controverso ou que cometeu atos repreensíveis é, de certa forma, validar ou apoiar suas ações. Isso pode gerar um sentimento de punição, como se o público estivesse se associando às falhas do artista ao apreciar sua arte. Também alertam que a qualidade da obra não deve servir como escudo para encobrir comportamentos problemáticos ou atitudes condenáveis dos artistas, no que estão absolutamente certos.
A rinha
A cultura do cancelamento perene das redes sociais intensificou esse debate, pois as pessoas podem sentir uma falsa proximidade e intimidade com os artistas.
Ao defender essa separação, abrimos espaço para apreciar a arte em sua plenitude, valorizando suas próprias qualidades estéticas e expressivas. Assim, enriquecemos interpretações e celebramos a arte como força transformadora e de conexão com a humanidade. Mais importante: artistas são complexos, seres humanos são contraditórios, mas não imunes de críticas, anacronismos e contemporizações. Assim, podemos continuar a apreciar as obras que gostamos, sem a culpa de estarmos só passando a mão na cabeça do artista mesmo.