Há semanas veículos de imprensa tradicionais buscam emplacar que a sociedade brasileira aprova o Novo Ensino Médio. O fato é que pais, estudantes e professores que hoje trabalham com ensino superior talvez não tenham compreendido o tamanho da “cilada” que é o NEM.
Começamos pela ampliação da carga horária anual que passa de 800h para 1.000h e que gradativamente deve aumentar, já que a legislação prevê que Ensino Médio chegue a atingir 1.400 horas de aula por ano (ensino médio integral). A ampliação de 800 para 1.000 horas não é maior dos transtornos, visto que o Rio Grande do Sul, por exemplo, já tem essa carga anual desde 2012 quando ocorreu no estado a implementação do chamado Ensino Médio Politécnico que visava inserção de componentes curriculares para integração de áreas do conhecimento (mas que foi descontinuado com a troca de governo estadual). É claro que um professor da rede pública pode ler esse texto e dizer que é um problema, visto a falta de docentes que já é recorrente nos quadros de recursos humanos das escolas, mas vamos focar numa outra questão: a divisão BASE x ITINERÁRIO.
Primeiro que todas as escolas passam a ter um componente chamado PROJETO DE VIDA, cuja matriz de referência não varia muito entre as redes e que possui uma série de objetos do conhecimento, no mínimo, passíveis de serem contestados. Há ali tópicos que tangenciam o campo da psicologia e psicopedagogia, mas não existem redes realizando concursos ou contratando profissionais destas áreas para realizar o trabalho. Além disso, as redes colocam o processo avaliativo de Projeto de Vida dentro do mesmo padrão que os demais componentes. Em redes onde o estudante recebe notas – em números, sem pareceres – Projeto de Vida também entra na mesma lógica de médias e somatórios para aprovação. Como você avalia a construção do PROJETO DE VIDA do estudante? E se ele não conseguir demonstrar empatia? E se ele tiver valores sociais destoantes dos valores dos professores regentes? Ele é reprovado por não ter uma NOTA já que, em tese, não construiu as habilidades e competências evocadas na matriz de referência?
Mas sigamos com os problemas de BASE x ITINERÁRIO.
A BASE é aquele elenco de componentes curriculares que todo mundo já conhece e que há muitos anos é colocada dentro de 4 grandes áreas do conhecimento: Matemática e Suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Geografia, História, Filosofia, Sociologia e o antiquado Ensino Religioso), Ciências da Natureza e Suas Tecnologias (Física, Química e Biologia) e Linguagens e Suas Tecnologias (Língua Estrangeira, Língua Portuguesa, Literatura, Educação Física, Arte). O ITINERÁRIO recebe nomes diferentes para cada rede podendo ser chamado de Itinerário Formativo, Percurso Formativo, Eletiva ou Trilha de Aprendizagem (vai do gosto de cada mantenedora) e são os novos componentes curriculares que vão compor a tal da reforma.
Na diretrizes nacionais, a distribuição das 1.000 horas anuais ficam assim:
- 1º Ano são 800h de base e 200h de itinerário
- 2º Ano são 600h de base e 400h de itinerário
- 3º ano são 400h de base e 600h de itinerário.
Deu pra sentir, pela distribuição, o que vai acontecer com a Base Nacional Comum Currículo? Não deu? Explico: com a redução da carga horária da Base, ao longo dos anos letivos, caem componentes curriculares importantes para a formação dos sujeitos, as áreas mais prejudicadas são as Ciências da Natureza e as Ciências Humanas. A lista de competências e habilidades que devem ser desenvolvidas no Ensino Médio segue a mesma e necessita em diversos casos de professores especialistas naquele componente curricular específico. Mas o estudante não vai ter essa aula, então vai sair do Ensino Médio sem desenvolver essas habilidades que são consideradas chave para que ele enfrente a vida em sociedade. E nem falei do quanto vai prejudicar aqueles que pretendem passar por processos seletivos como Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou vestibulares.
As horas desses componentes são substituídas pelos Itinerários que, em tese, o estudante escolhe para dar seguimento aos estudos.
Por que EM TESE? Porque existem municípios pequenos que só possuem uma escola de Ensino Médio, com apenas uma turma para cada ano do Ensino Médio. Essa escola só poderá oferecer um itinerário e, por óbvio, o que será oferecido demandará exclusivamente do quadro de professores que a escola possui. O que vai acarretar em uma única possibilidade para o chamado aprofundamento e, claro, em professores de áreas não afins lecionando os componentes. Você já pensou em um professor de Filosofia tendo que lecionar Estatística ou em um professor de Matemática lecionando Comunicação e Marketing? Pois é isso que está acontecendo (sim, já está acontecendo).
Mas tem mais, muito mais: cada mantenedora foi responsável por criar os itinerários formativos. A orientação era que para que mantenedoras fizessem testes em escolas-piloto e que os estudantes fossem ouvidos para que seus interesses fossem representados dentro das matrizes curriculares. O problema é que tivemos uma PANDEMIA no caminho e com as aulas remotas muitas mantenedoras fizeram isso de forma “xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente” ou nem mesmo fizeram qualquer oitiva dos estudantes, famílias e docentes.
E o que aconteceu? Os itinerários foram organizados, assim como o Projeto de Vida, com base nos interesses de corporações “vendedoras de livros e cursos”, institutos cujos líderes não são educadores ou organizações que despontam na educação com muita propaganda mas pouquíssima ação efetiva.
Nisso você digita em algum buscador pela matriz curricular e se depara com Mundo Pets SA, O Corpo Fala e Brigadeiro Caseiro e fica se questionando como esses componentes podem ter 40, 80 ou mesmo 120 horas ao ano. Isso sem contar matrizes, muitas vezes empurradas para escolas de periferia, em que você fica em dúvida se está mesmo no site da secretaria de educação do seu estado ou se abriu sem querer um link do curso do coach financeiro que deve milhões para Receita Federal, mas que jura que vai te ensinar a ganhar 1 milhão antes dos 20 anos.
E mesmo que alguns componentes façam sentido – considerando as escolas do século XXI – como Cultura Digital ou Comunicação, as escolas não possuem infraestrutura básica: não tem internet eficiente (que comporte dezenas de aparelhos simultaneamente conectados) – isso quando tem internet. Milhares de escolas sem laboratórios de informática, sem laboratórios de ciência, sem espaços com recursos digitais ao alcance de professores e estudantes.
Por fim, antes que cheguem os donos da verdade da educação do país para massacrar esse texto, quero informar dois pontos:
Primeiro que não se trata de uma redação acadêmica e, por esse motivo, não usei a norma culta da língua portuguesa.
Segundo que professores querem mudanças na metodologia, mas para isso é uníssono o grito que brada por infraestrutura e formação adequada. Não adianta mudar Ensino Médio colocando o professor para ser coach motivacional ou pra lecionar componentes os chamando de “inovadores”. Uma boa aula de Química, preparada em um laboratório de ciências provido de todo material e de um auxiliar de laboratório, vale muito mais do que 80 horas falando sobre brigadeiros gourmet.
Você pode conferir meu fio sobre isso totalmente desprovido de academicismos e palavras bonitinhas da norma culta da língua. E muito mais aqui no Antipedagógico.