Você sabe qual é o problema de O Problema dos 3 Corpos?
A série que adapta o livro O Problema dos Três Corpos é o primeiro livro da trilogia Lembrança do passado da Terra de Cixin Liu, e é surpreendente. Não esperava nada demais, mas ao longo dos 30 episódios acabei me tornando fã dos protagonistas e com sua trama absurda. E ao final resolvi assistir a versão da série da Netflix e… bem, acho que nós precisamos falar do problema de O Problema dos 3 Corpos, pois quase não podemos comparar as duas versões simplesmente com uma planilha.
A Netflix investiu pesado, foram USD 160 milhões por oito episódios co-criados por David Benioff e DB Wies de Game of Thrones. O escritor original também faz parte da roteirização, mas isso não ajudou a adaptação.
O livro não é uma ficção científica simples ou leve, ela apresenta problemas complicados e sua trama é extremamente densa. Mesmo para quem não se incomoda com “licenças poéticas” em uma adaptação é preciso entender que algumas “atualizações” são necessárias para manter o sentimento que o autor original tentou expressar em determinada situação. Isabel Boscov e PH Santos fizeram ótimos reviews da série da Netflix, mas não consigo concordar com nenhum deles.
Infelizmente é quase impossível não contar algo da história para que eu possa expor meu argumento. Sim, tem spoiler, mas prometo me conter.
Dois problemas dos 3 Corpos
Não li o livro ainda, mas assisti as duas versões das séries e as diferenças são gritantes – refletem muito das culturas ocidentais e orientais. As duas adaptações trazem representações estereotipadas das civilizações opostas, ocidentais acharão estranha a representação da versão chinesa. A maneira como a versão da Netflix retrata os problemas chineses é de bizarra no mínimo, vi uma propaganda anti-comunista extremamente desnecessária. Além disso, o que mais me chocou é que a versão da Netflix extrapola na violência, com a nítida vontade de atacar aquilo que não entende e chocar o espectador sem motivo.
A maneira como a dupla de roteiristas de Game of Thrones levam a trama é, na minha opinião, precipitada e em diversos momentos porca. Misturaram personagens e os dividiram em novos astrofísicos gostosões que vão beber no bar para mostrar que são legais, inteligentes e bem-sucedidos. A versão chinesa traz um elenco mais simples – mas muito mais profundo – com mais tempo para contar a história, isso torna a história muito mais factível, com humanos que agem realmente como gente de verdade. A trama gira em torno do mistério, mas o trabalho do Dr. Wang Miao e sua relação com a família, além das investigações com comandante Shi Qiang, seu companheiro de investigações, tornam a história realmente interessante.
Nenhum dos dois personagens existem na versão da Netflix.
Particularmente acredito ser fácil optar pela versão chinesa devido a construção dos personagens, mesmo com culturas diferentes e precisando assistir no YouTube com legendas em inglês (mas você pode mandar a plataforma traduzi-las automaticamente), não são estereótipos de gente famosa. Mas não é só isso, algumas músicas tiveram que ser removidas por conta de direitos autorais e os administradores simplesmente não se importaram com isso e colocaram qualquer música no lugar, quebrando qualquer clima tenso. E é importante lembrar que, apesar de tudo, é grátis. Você não tem que pagar por um serviço de assinatura para assisstir.
Abaixo você confere a versão chinesa completa e de graça de Three-Body, ou O Problema dos 3 Corpos.
Muito mais do que três corpos
As diferenças entre as duas séries são massivas e refletem muito suas respectivas ideologias, orientais e ocidentais obviamente tem pontos de vista diferentes de situações diferentes. A Netflix resolveu enfiar o pé na jaca na demonização da cultura chinesa, enquanto a versão ocidental provavelmente “passa o pano” mais do que deveria. Mas a visão do gore, do sangue voando, de gente morrendo, é algo que a versão ocidental assume e carrega nas costas até o último minuto.
A versão oriental não tem essa violência explicita e trata temas como suicídio com respeito e sem cuidado, sem transformar em um evento e humanizando a situação. A versão ocidental gosta de mostrar sangue e mostar ele na tela, mas tem medo de tratar de suicídio da maneira correta. Uma troca covarde feita por roteiristas que ganham tanto.
Outro fator interessante é a incursão final no barco que são iguais, mas diferentes. Na versão ocidental a Netflix tentou trazer um questionamento moral acima do devido colocando crianças e famílias inteiras para dentro do barco. A versão chinesa tratou de colocar mercernários e ex-marinheiros norte-americanos que matam criança para morrerem. A versão Netflix até um pé de criança amputado coloca em uma cena para chocar o espectador pelos motivos errados mais uma vez.
Aparentemente a Netflix não quer que se fale em suicidio, mas criança mutilada pode.
Na versão chinesa a Dr. Ye Wenjie desmaia e cai no meio da neve após perceber o que fez, mas não de arrependimento. Na versão Netflix ela só demonstra ódio (não que a população mundial do mundo real seja muito diferente, mas você entendeu). A Netflix não fala o que aconteceu com o marido dela… Covardes!
VENHAM.
VOU AJUDÁ-LOS A CONQUISTAR ESSE MUNDO.
NOSSA CIVILIZAÇÃO NÃO É MAIS CAPAZ DE RESOLVER SEUS PRÓPRIOS PROBLEMAS.
NÓS PRECISAMOS DA SUA FORÇA PARA INTERFERIR.
É mais fácil destruir do que concertar
Antes de seguir com esta análise é essencial que eu afirme e reafirme: adorei a série chinesa e odiei a versão Netflix. A pressa que tudo ocorre na versão ocidental me irritou demais, se não fosse a versão chinesa teria gostado menos ainda, já que – aparentemente – a versão ocidental queima a largada e explica coisas que só viriam no próximo livro.
Informações são simplesmente jogadas na sua cara pelos roteiristas de Game of Thrones que esperam que você realmente se identifique com um astrofísico gostosão. Você não consegue se sensibilizar ali por falta de tempo e por falta de uma história factível, a verossimilhança, tão necessária para tornar uma ficção científica crível, é ignorada em nome de contantes rompantes violentos desnecessários para a trama.
Apesar de tudo é importante afirmar que a série chinesa está longe de ser perfeita – na verdade ela só consegue ser melhor que a da Netflix mesmo. Detalhes como o exército chinês não usar colete à prova de balas e o argumento simplesmente ignorar a soberania territorial do Canal do Panamá são fatos no mínimo estranhos, mesmo em uma ficção.
Mas existem pérolas na versão chinesa que me surpreenderam positivamente como a cutucada nos EUA quanto à derrota do Vietnã. Obviamente o gringo fica puto, mas tudo fica bem quando o general norte-americano dá de presente CHARUTOS CUBANOS para o comandante Shi Qiang. Não é possível que não haja ironia nessa cena!
Vale muito mais a pena você assistir 30 episódios de graça no YouTube do que pagar a Netflix para assistir aquela aberração.