O Agente Secreto é muito mais do que um filme.
A fotografia e a ambientação de O Agente Secreto são espetaculares. A cinematografia, os figurinos, a textura da imagem, tudo parece retirado de um baú de lembranças. Não é um filme que se assiste; é uma memória que se revive. Kleber Mendonça Filho transforma o ato de ver em algo íntimo, quase familiar, como zapear uma fita VHS antiga com registros de viagens e afetos. Há algo de nostálgico e caseiro na maneira como a câmera observa o mundo, e essa proximidade dissolve a fronteira entre o real e o ficcional.
Esse esquecimento de que estamos vendo uma ficção é muito por culpa (ou mérito) das atuações. Elas são sublimes. Há um carisma tão simples e verdadeiro em cada personagem que tudo parece espontâneo, natural. Os diálogos são perfeitos: fazem rir, apertam o peito, criam tensão e ternura ao mesmo tempo. É tudo tão orgânico que chega um momento em que você se pega pensando que não está mais assistindo a um filme, mas a fragmentos de vidas reais. O Agente Secreto se torna um registro íntimo, quase documental, de pessoas que não são mais apenas personagens nessa fábula, mas que realmente existiram e que, de algum modo, continuam existindo dentro da gente.
E, no meio de todos esses personagens, há uma figura que brilha mais forte: Dona Sebastiana. Ela é tudo o que uma família brasileira tem. Ao mesmo tempo, é a avó crítica e ácida, a matriarca que não tem tempo pra pirraça, e também a mãe que acolhe, que protege, que cuida sem perguntar a quem. Fala o que pensa, sem filtro, sem papas na língua e é justamente aí que mora sua beleza. Mais do que um personagem, é um retrato. Um retrato de um Brasil que vive em cada casa, de norte a sul. Todo mundo conhece uma Dona Sebastiana. Todo mundo tem uma Dona Sebastiana. E é impossível não se sentir abraçado por ela, mesmo quando ela puxa a orelha.
E aí tem o Wagner Moura, o coração do filme. A condecoração dele em Cannes faz total sentido e não por um papel explosivo ou visceral, desses que vencem prêmio pelos berros. É o oposto, vence pela elegância, pela sutileza. A atuação dele é viva nas minúcias: no olhar que demora um segundo a mais, no silêncio que diz tudo, no jeito de esconder preocupações que o personagem não admite nem pra si mesmo. É uma performance contida, mas carregada de vida.

E, sim, é impossível não ver o próprio Wagner ali e tá tudo bem. Porque o Armando (ou Marcelo) precisa exatamente disso: interpretar um personagem dentro da própria vida. O carisma, a graça e o humor que Wagner Moura tem na vida real são o que faz Armando encarnar o espírito de alguém que está, o tempo todo, representando uma vida que não é só dele, num Recife dos anos 70 que mistura verdade, fingimento e sobrevivência.
E talvez o ponto mais fascinante de O Agente Secreto seja justamente esse: ele cheira e soa como uma crônica urbana. A ditadura está ali, mas não como personagem (amém) ativo que persegue os mocinhos e motiva os vilões. Kleber não faz da repressão o vilão, nem da censura o motor da história. Ela é o pano de fundo, o cenário, o ar que se respira, mas não o foco.
O filme se interessa é pelo cotidiano, pelos fragmentos humanos que atravessam esse período: o policial corrupto, o militar reformado, os refugiados, os trabalhadores comuns. São essas pequenas histórias, esses núcleos discretos, que formam o coração da narrativa. Cada crônica tem sua força própria, e quando todas se encontram próximo ao final o resultado é arrebatador. O filme te dá a sensação de ter vivido tudo aquilo junto com eles, e o ápice chega como uma explosão silenciosa de sentido.

Mas se há um ponto que me incomodou, foi o final. E digo isso sem spoilers. Ele é anticlimático e sinto que quebra a narrativa de forma grossa. Você sai da sessão com a sensação de que algo falta, de que não terminou. Mas ainda assim eu entendo o que Kleber quis fazer, que é um final catártico, pensado pra deixar o público com essa exata sensação de vazio que os próprios personagens experimentam. Afinal, o que mais temos da Ditadura são finais sem solução, histórias sem finais. E, por isso mesmo, ele funciona dentro da proposta do filme.
Não é um final essencialmente ruim, nem um que estraga a experiência. Mas é um final que provoca: faz você querer mais, faz você querer voltar. E esse “querer voltar” tem dois lados. De um lado, é prova de que o filme te envolveu, te acolheu, te marcou. De outro, é um sinal de que o desfecho não entregou totalmente o que o coração esperava. É como se alguém tivesse tirado o doce da sua boca antes do último pedaço. Você fica ali, olhando pro vazio, querendo só mais um gosto.
PS.: Que deus abençoe quem teve a ideia de várias cenas de peitos peludos e suados em camisas entreabertas, principalmente os de Gabriel Leone e Wagner Moura. Jamais esqueceremos do seu sacrifício.
PS. 2: Se vier Oscar, virá com Wagner Moura em Melhor Ator e, talvez, um de Melhor Filme Estrangeiro. Vamos aguardar a concorrência.
Veja mais análises no Letterboxd do Stevens!
