Centésimo décimo oitavo dia de uma semana qualquer, de um ano que parei de contar. Sempre com um que de mau humor e cansaço, me levanto para mais uma batalha, mas sem antes reclamar da fisgada diária da minha lombar. Mesma rotina, café, jornal, resmungo, desodorante, gravata, partida para mais um dia de duas longas horas de buzinas e xingamento. Tudo isso para mais nove horas de intermináveis relatórios, prazos absurdos em um ciclo sem fim. No final mesmo com aquela pilha de contas, tenho apenas o desejo de me afogar em algo que possa amortecer a queda de uma vida patética, normalmente cinco latas já me confortam.
Ligo a TV e o de sempre, jovens com suas imbecilidades das quais nunca irei entender, um ruído horroroso no qual chamam de música. Sinto asco pelo que estamos criando como sociedade e o quanto que tenho que me dedicar, para deixar tudo de mão beijada a pessoas que não tem respeito e que cultiva a imbecilidade. Continuo pulando os canais e me deparo com um canal de desenhos antigos, quando o rato acerta o gato com uma marreta, um lapso de sorriso esboça no canto esquerdo da minha boca e logo penso:
“Isso sim é humor de verdade”.
Após algumas horas de entretenimento nostálgico e álcool, me vi levantando e indo em direção ao porão, em meio a toda bagunça de ferramentas e outras tralhas eis que avisto um antigo vídeo game com alguns cartuchos. No canto oposto havia uma velha Philco 14 polegadas toda empoeirada e penso:
“Será?”
Depois de uma porca organização, conecto os aparelhos a tomada e eis que como uma fagulha numa palha seca surge o clarão e aquele ruído de 16 bits. Senti um estado de euforia que a anos não tinha e como uma criança, comecei a jogar junto a um largo sorriso.
Depois de algumas horas, fui buscar outro cartucho, quando ao lado vejo uma caixa de papelão semiaberta, nela estavam alguns CDs memoráveis e mais abaixo, uma jaqueta amarrotada encrostada de pin heads e pets costurados que iam desde The Clash a Discharge e diversos bottons simbolizando anarquia e antifascismo. Lembro que meu som portátil ainda funcionava e já botei um CD para tocar.
Entre o imaginário bate cabeça com minha jaqueta e quinze latas de cerveja depois, grito de forma visceral em sintonia com Johnny Rotten:
“NOOOOOOOO FUTURE FOR YOUUUUUUUUUU!!!!”
De repente dou uma cambaleada e derrubo algumas coisas de uma prateleira, assim que vou recolher o que havia caído, vejo a foto de uma figura sisuda, de olhar gélido ao lado de uma figura acanhada, de forma reprimida, mas ainda emanando um espírito materno. Ainda tenho as cicatrizes em minha mente:
“VAGABUNDO, INÚTIL… VOCÊ NÃO SERÁ NINGUÉM. VOCÊS JOVENS SÃO A ESCÓRIA”
Olho para um espelho rachado, refletindo minha alma e reverberando cada vez mais alto:
“ESCÓRIA, INÚTIL, VAGABUNDO”
“ESCÓRIA, INÚTIL, VAGABUNDO”
“ESCÓRIA, INÚTIL, VAGA”
“TRIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMM”
“TRIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMM”
Acordo no quarto toque, porém o telefone parou de tocar, na TV algum anúncio de joias passando e percebo que estava sonhando. Lembrei que era mesmo um sonho, já que boa parte daqueles objetos foram vendidos há anos, logo em que fui expulso de casa pela minha “subversão”.
Penso no homem amargo que me tornei, culpando uma geração que assim como a minha, tem seus sonhos esmagados por gerações frustradas por outras gerações, em um ciclo interminável da destruição de sonhos e revoluções pelo arcaico sistema nos quais criamos para o seu futuro, enquanto nos embebemos de um glorioso passado ao qual não tem mais retorno e que existe apenas em nossas lembranças.
Ainda posso viver em uma nostalgia, mesmo que falsa para alentar o pouco do que ainda sobra em uma alma destruída, porém não devo compartilhar e sim deixar que a juventude siga em frente sem meus espinhos ideológicos, pois sou apenas o passado.