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Star Trek é socialista?

Na fronteira final podemos afirmar que Star Trek é socialista.

No ano 2364 vemos uma destemida tripulação multinacional, multiétnica e multigênero desbravando os limites do espaço, indo onde nenhum ser humano jamais foi. Esta jornada nas estrelas conquistava o mundo, ganhava fãs e apresentava um futuro diferente do que vemos habitualmente em guerras estelares, em futuros cyberpunk e outras tantas fantasias distópicas que dominam a cultura pop. Mas por que Star Trek é tão diferente?

Na mitologia de Star Trek os seres humanos não trabalham apenas para sobreviver, como aponta Simon Tyrie em seu ótimo texto para a Jacobin, suas vidas vão além do trabalho. Exploram, criam, se expressam artisticamente, tudo isso graças ao avanço tecnológico e social e a uma luta contínua pela preservação e conservação de minorías — sejam elas quais forem, até mesmo planetas com pouco avanço tecnológico.

A Diretriz Primeira da Federação Unida de Planetas proibia que seus capitães e suas naves estelares usassem tecnologia superior para interferir em qualquer comunidade, povo ou espécie senciente – mesmo que custasse suas próprias vidas. Esta regra foi frequentemente violada, mas nunca foi revogada. Esta regra é também uma arma contra o imperialismo e traça comparativos interessantes como o mundo real, como quando os EUA bombardearam o Porto de Haiphong e outras bases vietnamitas em 1967.

Em outro momento, um dos capitães da Enterprise encontra um humano congelado no espaço que – de alguma forma – sobreviveu à criogenia espacial desde 1994. ““Muita coisa mudou nos últimos trezentos anos. As pessoas já não são obcecadas com o acúmulo de coisas. Nós eliminamos a fome, a miséria, a necessidade de posses. Nós crescemos e saímos da nossa infância.”

Me parece que o socialismo cresceu neste período.

Star Trek é socialista - Ícones da Enterprise e símbolos comunista com USSR Enterprise escrito - blog FAROFEIROS

Trekonomia

O conceito conhecido como Trekonomia, ou Trekonomics, surgiu em 2016 em um livro do economista francês Manu Saadia de mesmo nome. A obra detalha o universo de Star Trek do século 24 como um lugar sem escassez, o universo de Kirk e Piccard representa uma era pós-escassez onde a automação e inteligência artificial é organizada em prol da sociedade. Enquanto o motor de dobra espacial ainda não existe, a economia pós-escassez parece mais próxima da realidade do que gostaríamos de admitir. 

Na economia a escassez é o fato básico de que tudo o que os seres humanos produzem pode ser feito em uma quantidade finita. Seja por conta de tecnologias pouco eficientes ou pela falta de recursos (essencialmente os naturais), tudo tem limite em nosso planeta. Obviamente isso se aplica ao consumismo sem função, aquele que existe apenas para alimentar o capital e centraliza sua razão de existir no dinheiro. E, bem, sabemos bem que não se pode comer dinheiro ou beber ações de empresas na bolsa de valores.

A Federação Unida dos Planetas dispensa o uso de moeda. Afinal, onde não há crise econômica não há motivo para existir moeda. Mesmo assim, naquele universo, todos trabalham, ou melhor, agem em diversas funções pela galáxia. E por isso, vemos tantos personagens dedicando suas vidas à ciência, à exploração do Universo e à justiça.

A automação, neste final de revolução industrial, transforma bens produzidos em bens públicos. O autor mostra inclusive como os Ferengi – raça economicamente poderosa baseada no comércio e no capitalismo – abandonam seus velhos hábitos para adotar a social democracia keynesiana.

Expandir a prosperidade mundial e disseminar bens públicos em escala global é o que Manu Saadia indica como nossa sociedade se aproxima da Trekonomia. Imagine só programas sociais como um sistema único de saúde, acesso à educação e qualificação profissional (pronatec), habitação digna (Minha Casa, Minha Vida), (Brasil Sem Fome), (Programa de Aquisição de Alimentos)

Essas políticas sociais não habitam uma galáxia muito distante. Mesmo com falhas, representam tentativas concretas de bem-estar social. Como em Star Trek.

Além da fronteira final

HG Wells, autor de A Máquina do Tempo, imaginava um futuro distópico em que elites despreocupadas viviam na superfície, sustentadas por sub-classes trabalhadoras que habitavam o subsolo — uma crítica clara às desigualdades sociais de sua época. Suzanne Collins, em Jogos Vorazes, atualiza essa lógica: elites se divertem enquanto as classes inferiores lutam pela sobrevivência, transformando a opressão em entretenimento. Já George Lucas, criador de Star Wars, explora um universo marcado pelo imperialismo, com direito a guerras por tarifas comerciais e invasões planetárias.

Na contramão dessas distopias, Star Trek propõe uma utopia. Segundo o texto de Simon Tyrie na Jacobin, a série era assistida por Martin Luther King, que disse ser “o único programa que eu e minha esposa Coretta permitíamos que nossos três filhos pequenos ficassem acordados para assistir”.

Até mesmo Oppenheimer, para alguns, pode ser lido como um filme de esquerda — uma reflexão sobre ciência, poder e responsabilidade.

HG Wells, aliás, já havia publicado obras como A Guerra dos Mundos, A Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando, em 1920, viajou à Rússia e entrevistou ninguém menos que Lenin.

A cultura pop, com todas as suas nuances, sempre flertou com a crítica social. Sempre teve um pezinho na esquerda.

E sim, o comunismo luxuoso, totalmente automatizado, gay e espacial pode mesmo se tornar realidade.

Star Trek é socialista - montagem com ícones do socialismo ao lado de Spock e Piccard - blog FAROFEIROS

O radicalismo de Star Trek

Gene Roddenberry, criador de Star Trek, acreditava que a humanidade poderia evoluir para além do que era proposto pelos neoliberais. Sua série, lançada em 1966, já contava com uma tripulação diversa em etnia, gênero e nacionalidade. Mas, importante dizer: a hipocrisia e misoginia de Roddenberry estão bem documentadas.

Após seu afastamento de A Nova Geração, os produtores definiram que Star Trek não deveria ser instrumento pedagógico. Mesmo assim, a série prosperou com spin-offs e filmes e sempre manteve sua essência progressista.

Matthew Continett, editor-chefe do Washington Free Beacon, escreveu em 2016, uma frase que vale para Roddenberry e muitos outro progressistas: “(…) sei por que Gene Roddenberry se apegou tão ferozmente à sua noção de um futuro em que a natureza humana foi transformada em puro bem. É porque ele sabia mais do que ninguém o quão verdadeiramente horríveis podemos ser.”

Em Star Trek, a tecnologia sozinha, não constrói a utopia socialista que vemos nas telas, para que o argumento fosse crível era preciso que os personagens representassem o que o ser humano tem de melhor. Os problemas interpessoais são facilmente superados com o trabalho em equipe da tripulação da Enterprise. Independente do problema há comunicação entre todos e uma avaliação objetiva na maioria dos casos (dentro do contexto de um futuro espacial).

Resolução de conflitos, companheirismo e empatia, tudo isso transborda das telas.  E isso tem um nome que muitos hoje criminalizam e repudiam: solidariedade.

Então, podemos dizer que Star Trek é socialista? Sim.

Paola Costa colaborou com este texto.

Por Rodrigo Castro

Debochado e inconveniente. Escritor, roteirista e designer de brincadeirinha.

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